Jornal A Semana

PRIMEIRO DE MUITOS

  • Douglas Varela
  • 23/05/2020 09:15
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Madrugada com céu estrelado e sem o mínimo som que desperte a atenção. Um frio suave lá fora salpica as janelas com minúsculas gotículas de água enquanto embala o sono da humanidade tão bem acomodada sob o aconchego das cobertas de algodão. Entre uma brisa e outra que sopra, o pensamento corre solto na forma de sonho sem curso definido, deixado ao acaso para ir e vir conforme desejar na intenção de trazer e levar, manter e alterar, iniciar e finalizar. Esse sonho, assim como a brisa, é fluido, imaterial, irretomável, contudo, extremamente vívido durante aquele curto período de tempo em que somos presenteados com a oportunidade de tomá-lo como realidade, tempo este em que nos tornamos pura energia e viajamos pelos planos da mente como verdadeiros espíritos que somos.

Entre um abrir e fechar de olhos e outra rápida olhada no relógio de parede, nosso jovem amigo flutua entre a esfera terrena e a imaterial enquanto luta para retomar aquele sonho bom, convidativo, querendo vivê-lo por mais algumas horas. Contudo, os ponteiros não mentem e em pouco tempo o despertador explodirá ao seu lado com o toque no último volume. De fato, nada mais lhe agradaria do que levantar imediatamente para dar as boas-vindas àquele dia tão aguardado por reservar-lhe o início do curso universitário.

Em poucos segundos, retornam à mente algumas de suas vivências que confluíram para a possibilidade de concretização daquele momento – tantas mudanças a pontuar seu caminho desde a saída do ensino médio e que foram essenciais para uma aprovação no vestibular. Seu temor associado à chance de fracasso, tristeza em decorrência do afastamento do lar, dificuldade em conduzir a vida por conta própria... Um passado para se orgulhar, segundos de retomada daquilo que lhe moldou como ser humano.

Voltando ao presente, com um salto nosso jovem sai de seu ninho de conforto ao assustar-se com as horas nas quais os poucos segundos de lembrança se transformaram. Mais do que depressa ele veste a primeira camiseta que encontra, busca o dinheiro para a passagem do ônibus e sai às pressas de casa com a mochila nos ombros. Seu tempo é curto e ele precisa correr apressado para não perder o transporte, afinal de contas, aquele dia será marcado pela recepção dos calouros.

Alcançando o ônibus quase saindo do ponto, nosso jovem senta em um assento ao acaso, exausto e molhado por causa daquela corrida; certamente não chegará aos cuidados dos veteranos com o melhor aroma que poderia imaginar. A subida é longa e o asfalto bastante esburacado pelo grande número de veículos que diariamente passam por aquele trajeto; cada um deles a transportar uma vida que suspira por conta de seus próprios desafios a serem superados. Sentado na poltrona, o jovem vê seu reflexo naquela que foi a janela de muitos rostos antes do dele, rostos que estamparam sorrisos e lágrimas, faces dos mais diversos credos, línguas, cores e origens; faces estas de muitos estudantes que, assim como ele, viajaram rumo ao primeiro dia no mundo universitário. Teriam eles sobrevivido?

Sempre é tempo de descobrir. Chegando ao seu destino, o jovem desce o último degrau da estreita escada do ônibus com o peito aberto e coração receptivo para enfrentar tudo e todos naquela que será sua segunda casa a partir de agora. Entre tantos jovens ao seu redor, procura algum que possa lhe orientar quanto à localização de sua sala de aula e, mais importante ainda, onde seria possível comprar um café quente para lhe despertar daquela epifania iniciada ainda em seu quarto bagunçado. Para sua surpresa, encontra uma conhecida de anos que lhe auxilia nessas questões e aponta aqueles que serão seus colegas de turma - já devidamente pintados e sujos com farinha, dos pés à cabeça, manifestando publicamente sua submissão aos amados veteranos com aquele prazer único que se tem quando se é o centro das atenções.

Olho estralado, coração acelerado, frio na barriga. Não havia nosso amigo se preparado para aquele momento? Que ansiedade seria aquela que lhe tomava por dentro? Nada mais lógico: ansiamos por aquilo que um dia foi um sonho, uma brisa do outro lado da janela fria, mas que hoje se vivifica como um presente da amada vida... Sejamos gratos e sigamos em frente a passos largos!

 

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