Jornal A Semana

A RELATIVIZAÇÃO DA VERDADE

  • Douglas Varela
  • 03/11/2020 08:39
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A pandemia tem-me feito percorrer caminhos pelos quais, durante a “vida normal”, eram veredas inexploradas. Tenho ficado pasma ao analisar o quanto amadurecemos e o quanto mudamos nossa maneira de agir e pensar de acordo com o meio e situação em que estamos inseridos.

Esses dias, revisando sobre alguns aspectos da Grécia Antiga, assunto que está distante de nós cronologicamente, mas que faz-se presente em traços de nossos dias, deparei-me com uma frase do grego Protágoras, um sofista que ensinava em troca de dinheiro a aretê, ou seja, a arte da boa retórica.

Os gregos foram precursores da Democracia, o governo do povo, e para eles, o pior castigo existente era o ostracismo, ou seja, serem exilados, tornarem-se metecos e não poderem mais participar das discussões políticas na ágora. Para os gregos, quem não participasse da política, nem era considerado cidadão. Acho fantástico a maneira como os abismos formados entre as concepções gregas e as nossas diferem-se tanto, ao ponto que chegam a tocar-se...

Os sofistas, como antecipei acima, ensinavam aos cidadãos maneiras para eles ganharem debates políticos, tendo em vista que contrariamente ao pensamento de Sócrates, para os sofistas, a verdade é uma conveniência social e não universal. Protágoras, um dos sofistas mais famosos afirmou que “o homem é a medida de todas as coisas”. Espanto-me ao analisar o quanto a relativização explicitada por Protágoras faz-se presente em nosso meio.

Não temos acesso ao fato como um todo, mas apenas a uma pequena parcela que nos permitem ver. Somos influenciados a defendermos certo ideal, tomando-o como verdade absoluta e repudiando as demais possibilidades, fazendo com que sejamos facilmente manipuláveis. Pensamos que temos algum poder ou que sabemos de algo, mas somos apenas uma peça de xadrez na mão de pessoas mais poderosas. Acreditamos em algo ou alguém com uma aparência agradável ou com um discurso que afaga nossos interesses e ignoramos aquilo que é testado e comprovado por profissionais capacitados academicamente que dedicam a vida a isso. E o pior, essa onda de emburrecimento vertical e culto à ignorância também faz parte de uma estratégia de manipulação.

Nas ditaduras do século passado, os líderes governamentais censuravam produções artísticas ou jornalísticas que criticassem o Estado. Hoje, temos acesso a tantas informações que tudo acaba sendo relativizado. Fazendo com que, como cita Protágoras, uma verdade universal não exista, mas sim, cada um carregue em seu mundinho sua própria verdade, defendendo-a e julgando aqueles que pensem diferente, destinando discursos de ódio a tudo e todos que tentem contrariar. Infelizmente, como diria Saramago, “somos cegos que vendo, não veem”.

 


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